Peça Teatral: Adaptação do conto "Ciumento demais" de Nelson Rodrigues


Peça Teatral: Adaptação do conto "Ciumento demais" de Nelson Rodrigues

Mais uma peça, dessa vez um adaptação de um conto de Nelson Rodrigues - Ciumento Demais - que eu não reclamei nada do resultado desse sorteio - porque eu não gostei mesmo do livro de Jorge Amado que foi sorteado para a equipe, embora seja um bom livro - pois o conto é muito bom, bem escrito e envolvente.
Adaptei com uma amiga - Mariele Carmo - e a equipe achou por bem acrescentar dois personagens à história - o Anjo do Bem e o Anjo do Mal - que ajudaram a deixar a peça mais interessante, talvez até roubando o lugar de direito dos personagens principais.
Acho que foi a primeira peça que fiz da qual não tenho o que reclamar, porque, modéstia a parte, na minha opinião, ficou perfeita.

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Lúcia: (ajeitando a gravata do marido) Tem certeza de que não esqueceu nada?
Anjo do mal: Vamos mulher, despacha logo esse inútil, você tem mais o que fazer da vida. 

Olavo: Tenho... Bem, agora eu tenho que ir, infelizmente (sorri), você vai ficar bem?
Anjo do bem: (ironia) Ah, sim, claro que vai (é repreendido com um olhar pelo anjo do mal)

Lúcia: Vou sim. Cuida-se meu bem e volte logo (ele sai)
Anjo do mal: (no ouvido de Lúcia) Tem um telefone ali, sozinho... E você? Ah, sozinha... E o amor de sua vida? Esperando a sua ligação, você não vai fazer esta desfeita, vai? E ainda mais que você tem que avisar ele do jantar para o qual seu marido o vai convidar...
Lúcia: Bem, ele espera minha ligação, e eu pereço de saudade daquela voz.
Anjo do bem: Espere. Não se sente mal? Seu marido acabou de sair e tu já vai ligar pra outro? Afinal, não se sente mal em estar traindo o seu marido, a quem você jurou fidelidade e amor eterno diante de Deus, com o seu melhor amigo de infância? 
Lúcia: É, você tem razão. (senta-se em uma poltrona e fica a observar os cantos da sala, inquieta)
Anjo do mal: (com um sorriso debochado) Então, eu acho que...
Lúcia: (levantando-se apressada em direção ao telefone) É impossível, minha vontade é mais forte que eu.
Anjo do bem: E isso vai dar coisa que preste? Com certeza não. Oh meu Deus , perdoe essa pobre alma .
Anjo do mal: Deixe de ser chato, ela está apenas se divertindo, e isso não mata ninguém.
Lúcia: Oi, sou eu (sorri doce)
Aristóbulos: Você?
Lúcia: Oh, sim, meu marido vai te convidar para jantar aqui.
Aristóbulos: Já sabes muito bem que eu não vou.
Lúcia: Claro que vem, e por que não? 
Aristóbulos: Já te disse milhões de vezes que não tenho a mínima vontade de ir a tua casa, me diga, pra que? Pra me aborrecer? Ah, não, já me aborreço muito com meus assuntos cotidianos, não preciso de mais um para me encher a cabeça.
Lúcia: Ora, parece criança, deixe de bobagem, eu te fiz algo por acaso?
Aristóbulos: Não foi bem o que você fez, foi o que tu deixaste que fizesse contigo, sabes muito bem o que aconteceu da última vez que fui ai, você sabe que sou ciumento, que mato alguém por ciúmes e ficas tu no colo do seu marido, entre beijos e abraços, na minha frente... Tenha paciência Lúcia, não me peças para ir a tua casa, tudo menos isso.
Lúcia: Me surpreendo com tua criancice, o que eu poderia fazer?
Aristóbulos: Lúcia, eu te juro, eu preferia ser o marido enganado, que não sabe, ignora tudo, vive no melhor dos mundos. Mas eu não. Eu sei e aguento firme. Sou o maior sem-vergonha de todos os tempos! Também já te fiz proposta de te tirar daí e fugir contigo, mas você...
Lúcia: Seria muito ingrato de minha parte, posso até não amá-lo, mas tenho pena dele, não acho justo deixá-lo a ver navios... E você vem sim ao jantar, fique tranqüilo, já falei com ele e dessa vez nada de beijos e abraços, você vem? 

Aristóbulos: Ah... não posso , tenho compromissos. Beijinho pra ti (desliga)
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Anjo do bem: Engraçada a vida, né ? Era ciumento da cabeça aos pés — ciumento, como ele próprio admitia, de dar tiros, de subir pelas paredes. E não fazia nenhum segredo disso. Rosnava com os amigos: “Se eu gostar de uma cara, e se a cara me passar pra trás, eu faço e aconteço”. Pois bem. Passa-se o tempo e, por fatalidade, Aristóbulos se apaixona por uma mulher que já tinha outro, por uma mulher casada e, mais, casada com o seu amigo de infância, Olavo. Correspondido, ele passou a viver num inferno. Junto da pequena, não se ocupava de outro assunto senão o marido.
Anjo do mal: E o fato é que aquele romance, que prometia delícias inenarráveis, passou a envenenar a vida e a alma de Aristóbulos. Ressentido, ele não apareceu mais na casa do outro. Não aceitava os convites que, na mais patética boa-fé, o Olavo fazia-lhe para jantar em dia de semana e almoçar nos domingos. Tratava de disfarçar: “Não posso. Tenho compromisso”. Etc. etc. Uma vez, transigiu; foi. Mas se arrependeu, amargamente.
Mais tarde...
Olavo: Lúcia , Lúcia , cadê você mulher ?
Lúcia: O que queres ?
Olavo:
O Aristóbulos não vem aqui há meses, então espero que tenhas preparado uma comida gostosa, pro nosso jantar de hoje .
Lúcia: Ah, claro.
Olavo: Ah, claro que sim, não é a toa que me casei contigo, além de linda é uma perfeita cozinheira. Aliás, quero que esteja impecável para esse jantar.
Lúcia: Você sempre tão exibido... (sorri)
Olavo: (sorri) Fazer o que, né? Eu posso... Bem, estou indo lá buscar Aristóbulos, volto logo (sai com pressa).
Lúcia: Isso não vai dar certo.
Anjo do bem: Foi você que começou isso, não? Aguente. Eu te disse umas quinhentas vezes, acabe com isso, acabe logo, não vale à pena, mas você me escutou? Ah, claro que não, afinal, quem me ouve?
Anjo do mal: Cara , caríssima Lúcia , acalme-se, você é muito esperta, vai saber lidar com a situação, e te digo mais, você é das minhas , cara de esposa bem comportada , mais é um fogo na saia, continue assim... Bem, não sei, mas parece que a noite irá ser tão... Hum, cadê a palavra? Hum...Magnífica? (sorri maliciosamente)

Na rua...

Olavo: (conversando sozinho) Não paro de pensar na carta que recebi, onde dizia que eu estava bancando o palhaço , que Lúcia me traia com Aristóbulos , mais será possível ? Meu grande amigo de infância e minha esposa, juntos ? (Bate na porta é Aristóbulos, que atende ligeiro)...  Aristóbulos , como é bom vê-lo.
Aristóbulos: É bom vê-lo também grande amigo. (aparentando alegria)
Olavo: Vim te convidar para um jantar lá em casa, agora, e não me venha com histórias de que está muito ocupado e que tem problemas para resolver no momento, pois pelo que vejo, hoje, você não está fazendo nada, e mesmo que estivesse deixaria de fazer, pois há meses que você não põe os pés nem na calçada de minha casa.
Aristóbulos: Meu amigo...
Olavo: Nem me venha com histórias, olha, pela nossa amizade é melhor que me acompanhe, ou vai ou nunca mais fale comigo... Então, o que diz?
Aristóbulos: Você quando para numa ideia só Deus pra mudar, pois vamos. (sorri)


Enquanto andam pela rua em direção a casa de Olavo.

Olavo: Aristóbulos, me diga tu és ciumento de matar? Diga, terias coragem de matar? Fala! Terias?
Aristóbulos (reluta): Bem... Ah...Só vendo, só vendo.
Olavo: Diga, sem medo, só aqui entre nós, terias coragem de matar alguém por ciúmes?
Aristóbulos: Hãm... Teria sim. E por que não? O sujeito que encostasse a mão na minha mulher, eu passava-lhe fogo, tranquilamente!
Olavo: (ria)

Chegam a sua casa e param na sala para guardar chapéus e paletós 

Anjo do mal: Tem certeza de que não temos parentesco? Você é tão parecida comigo às vezes, e, sim, seu marido te pediu pra ficar apenas linda, e não tentar roubar o trono da rainha da Inglaterra... Assim, está tentando matar o pobre Aristóbulos de ciúmes... ou... de desejo (sorri)
Lúcia: (sorri envergonhada) Oh, chegaram. O jantar já está pronto, posso servir?
Olavo: (Beija-a, olha pra Aristóbulos) Batom da minha mulher.
Anjo do mal: (ri da situação e comenta com o outro anjo) Estou começando a gostar deste homem, decidido, só tem cara de bobo mesmo.
Anjo do bem: Por que você fala tanto? Deixe de provocação e fique quieta... (vira os olhos entediado) Tinha de ser mulher.
Lúcia: Vamos jantar? (olhou para Aristóbulos e disse disfarçando num sussuro) Desculpa.
Olavo: Vamos Aristóbulos?
Aristóbulos: Vamos

Sentaram-se a mesa e Lúcia os serviu, após algumas garfadas no arroz Olavo quebra o silêncio que reinava na mesa.
Olavo:
Mas se é assim Aristóbulos, se tens tantos ciúmes, não podes ter romance com mulher casada. Isso é evidente
Aristóbulos: Por quê?
Olavo:
Por quê? Mas é óbvio: e o marido, rapaz? Terias de ter ciúmes também do marido, claro! Afinal de contas, o marido é um homem!
Anjo do mal: Haha, o circo vai pegar fooogo, e eu bem que posso ajudar a pôr lenha nessa fogueira.
Anjo do bem: Fique quieta e evite uma tragédia, por favor.
Lúcia: (nervosa e constrangida pergunta a visita) Mais arroz?
Aristóbulos: Não, obrigada
Olavo: Terias coragem de tomar a mulher de um marido e matá-lo? Responde, com sinceridade: matarias o marido?
Aristóbulos: Sei lá! Não sei. Depende muito.
Olavo: Bota mais arroz, por favor, Lúcia... Sim, voltando, o lógico, meu amigo, é que morra o amante. Ou a mulher. O marido por que, ora bolas? Só porque forneceu a esposa, sem saber e sem querer? E, além disso, eu, aqui entre nós, que ninguém nos ouça, eu não acredito que tivesses peito, que fosses bastante homem para matar ninguém. 
Aristóbulos e Lúcia param de comer, já o outro jantava numa voracidade de possesso
Anjo do mal: Bem, me deixe lá fazer meu trabalho.
Anjo do bem: (segurando em seu braço) Olha, pare quieta num canto, isso ainda pode acabar apenas em discussão, ninguém precisa que você ponha lenha na fogueira, o fogo já está bem alto.
Anjo do mal: O serviço é meu, não? Então vou fazê-lo, e com muito gosto (sorri e se solta)... (apóia as mãos nos ombros de Aristóbulos) Olha só, tentando te rebaixar, eu não deixava, não mesmo, todo mundo sabe que não se pode ferir o ego de um homem e ainda mais o seu, um homem tão forte e corajoso, mais que audácia, ele não tem esse direito, quem ele pensa que é? O dono do mundo? Que ousadia, se eu fosse você eu mostrava a ele do que você é capaz.
Aristóbulos: (calmo, pergunta a Olavo) Tu achas que eu não seria bastante homem?
Olavo: (mastigando, responde) Duvido muito!
Anjo do mal: Mas que homem atrevido, não?
Súbito, Aristóbulos ergue-se. Com um golpe de calcanhar, atira longe a cadeira, ao mesmo tempo que um revólver aparece na sua mão. Aperta o gatilho três vezes. Olavo cai do chão e antes que morra Aristóbulos lhe diz.
Aristóbulos: (com um sorriso debochado) Bem meu amigo, só pra te avisar, sua esposa foi minha, muitas vezes... Tua e minha... De nós dois... Traía você comigo... Agora é minha, só minha... Foi bom te conhecer. Adeus (e lhe dá um último tiro na cabeça)
Morreu ali mesmo, com a boca cheia de arroz.


Cenário:
É enorme e aconselho a vocês a acrescentar o que mais for necessário
01- Vinho
03 - Taças
01 - Panela de arroz cozido
-- Outros alimentos
01 - Mesa de jantar
04 - Cadeiras 
01 - Mesa de centro
02- Poltrona
01 - Tapete
01 - Espelho (grande)
01 - Fogão
01 - Casa de madeira 
01 - Forro de mesa
01 - Cabide (daqueles antigos de pendurar casacos e chapéus)
03 - Pratos
-- Talheres
02 - Telefone antigo
02 - Bolsa de sangue
01 - Arma de brinquedo
03 - Jarro de flores

Figurino:
É só uma dica de figurino, ele pode ser montado pelos atores (:
Lúcia: Roupão; vestido (discutir a cor com a atriz); salto; colar; anel; aliança; laço de tule.
Olavo: Roupa social (sapatos, blusa de manga comprida, calça); terno; chapéus; aliança; relógio (de bolso ou pulso); pasta preta.
Aristóbulos: Chapéu; sapato; calça jeans; blazer
Anjo do mal: Vestido (preto ou vermelho); asas; meia calça (de cor contrária ao vestido); salto; cartolinha; luvas; acessórios.
Anjo do bem: Sobretudo (ou terno); asas; sapato.





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